segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO?


Introdução

Em 03/01/2016, a Lei n. 13.146/2015 alterou o rol dos absolutamente incapazes constante do CC/2002, art. 3o. Atualmente, somente são considerados absolutamente incapazes “os menores de 16 (dezesseis) anos”. Compare-se:

CC/2002, art. 3º, redação original
CC/2002, art. 3º, redação da Lei n. 13.146/2015
Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I - os menores de dezesseis anos;
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
Art. 3o  São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.

O CC/2002, art. 198, I, que diz que “não corre a prescrição contra os incapazes de que trata o art. 3o;” permanece inalterado.

Caberia alegar que a redação original permanece em vigor com base em um alegado princípio constitucional da vedação do retrocesso? Tratei do tema em uma impugnação ao cumprimento de sentença protocolada em agosto de 2016, que reproduzo abaixo.

Princípio da vedação do retrocesso

O Exequente afirma que a aplicação da Lei n. 13.146, da forma como o INSS procedeu, viola a “vedação do retrocesso.[i] Cabe analisar se o princípio invocado tem alguma eficácia jurídica no Brasil.

A doutrina constitucional brasileira majoritária empreende grande esforço para justificar a existência de um princípio constitucional implícito de vedação do retrocesso, apesar de a Constituição da República contar com amplo rol de direitos sociais. No Brasil, costuma-se importar tudo, até mesmo princípios já abandonados por seus inventores e criados para suprir lacuna de uma Lei Fundamental (alemã) que não previa direitos fundamentais sociais.

A Nichtumkehrbarkeitstheorie ou teoria da irreversibilidade, desenvolvida por Konrad Hesse, não teve futuro na Alemanha, pela razão óbvia de que dependia de recursos econômicos. Por lá, seguiu-se com a reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen).

Mas a doutrina de Hesse foi difundida pela Europa e chegou a Portugal, onde J. J. Gomes Canotilho a abraçou e desenvolveu. Porém, o próprio Canotilho, para dar sobrevida à doutrina, mudou de posição em relação à eficácia normativa do princípio da vedação do retrocesso. Certamente teve influência nesse sentido o fato de o Tribunal Constitucional português ter mudado seu entendimento quando deparado com a crise econômica enfrentada por Portugal nos anos de 2010-2011.

A mudança pode ser verificada nos escritos mais recentes de Canotilho. O autor português, em português claro, defende tese contrária à visão rígida da vedação do retrocesso. Merece destaque o seguinte trecho:

O rígido princípio da ‘não reversibilidade’ ou, formulação marcadamente ideológica, o ‘princípio da proibição da evolução reaccionária’ pressupunha um progresso, uma direcção e uma meta emancipatória e unilateralmente definidas: aumento contínuo de prestações sociais. Deve relativizar-se este discurso que nós próprios enfatizámos noutros trabalhos. ‘A dramática aceitação de ‘menos trabalho e menos salário, mas trabalho e salário e para todos’, o desafio da bancarrota da previdência social, o desemprego duradouro, parecem apontar para a insustentabilidade do princípio da não reversibilidade social. (CANOTILHO, Estudos sobre Direitos Fundamentais, 2004, p. 111)

Na mesma linha de Canotilho, pode-se citar Reis Novais, para quem ...

... a concepção do princípio da proibição do retrocesso social entendida enquanto proibição de diminuição dos níveis outrora garantidos de realização dos direitos sociais, ou de um direito social em particular, não tem, pura e simplesmente, nem arrimo positivo em qualquer ordem constitucional, nem sustentação dogmática, nem justificação ou apoio em quaisquer critérios de simples razoabilidade. (NOVAIS, Direitos sociais, 2010, p. 244)

O mesmo autor prossegue, em outro trabalho:

De facto, só uma crença supersticiosa, um optimismo inabalável ou uma concepção determinista da história —todos sem qualquer apoio constitucional— permitiriam fundar a plausibilidade de um tal princípio de proibição do retrocesso social. (NOVAIS, O princípio da proibição do retrocesso. Crítica)

Ou seja, como já sabiam os alemães, “a lei é poderosa, mais poderosa é a necessidade” (Gesetz ist mächtig, mächtiger ist die Noth - GOETHE, Faust).

No STF, embora citado em alguns votos, não há posição firmada no sentido de que seja um princípio juridicamente aplicável no Brasil. Para exemplificar a posição crítica à utilização do princípio, confira-se voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI 4543-MC/DF. O renomado Ministro argumenta que não se pode criar um novo critério de controle de constitucionalidade das leis, paralelo aos previstos no direito positivo:

Agora, diante de modelos legislativos cristalizados, Presidente, não me parece que seja de invocar, com todas as vênias à eminente Relatora em relação ao seu cuidadoso voto, o princípio do não-retrocesso, sob pena de nós criarmos um novo parâmetro de controle, ao lado dos parâmetros constitucionais efetivamente positivados, que é este modelo jurídico exitoso ou simpático. Esse não pode ser o critério. Haverá leis boas, leis más, leis feias!

Conforme visto, nem todos os comandos da sentença contam com a força da coisa julgada após as alterações da Lei n. 13.146/2015. Mesmo assim, o Exequente pretende executá-la inclusive no ponto superado. E com base em que? Com base no princípio da vedação do retrocesso. Este, conforme também visto, não é jurídico e, com toda certeza, não é critério para controle de constitucionalidade das leis.

Leis e princípios

Aliás, de um modo geral, ainda que se tratasse de um princípio positivado, ainda assim seria necessário haver uma incompatibilidade frontal entre a lei e princípio para que o aplicador lhe negasse eficácia. A esse respeito, o INSS adota como razões os argumentos de Humberto Ávila:

No caso de regras infraconstitucionais, os princípios constitucionais de fato servem para interpretar, bloquear e integrar as regras infraconstitucionais existentes. Os princípios constitucionais, no entanto, só exercem a sua função de bloqueio, destinada a afastar a regra legal, quando ela for efetivamente incompatível com o estado ideal cuja promoção é por eles determinada. O aplicador só pode deixar de aplicar uma regra infraconstitucional quando ela for inconstitucional, ou quando sua aplicação for irrazoável, por ser o caso concreto extraordinário. Ele não pode deixar de aplicar uma regra infraconstitucional simplesmente deixando-a de lado e pulando para o plano constitucional, por não concordar com a conseqüência a ser desencadeada pela ocorrência do fato previsto na sua hipótese. Ou a solução legislativa é incompatível com a Constituição, e, por isso, deve ser afastada por meio da eficácia bloqueadora dos princípios, sucedida pela sua eficácia integrativa, ou ela é compatível com o ordenamento constitucional, não podendo, nesse caso, ser simplesmente desconsiderada, como se fora um mero conselho, que o aplicador pudesse, ou não, levar em conta como elemento orientador da conduta normativamente prescrita. (AVILA, Neoconstitucionalismo)

Ora, a Lei n. 13.146/2015 nada tem de inconstitucional, mesmo porque tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que conta com status constitucional. E sequer implica um retrocesso, pois consiste na adoção, pelo legislador (inclusive o da Convenção), da forma que melhor promove a inclusão social da pessoa com deficiência. Por fim, a suspensividade ou não de um prazo prescricional está longe de violar o núcleo de qualquer direito fundamental. [...]


[i] Nota: Não era intenção, em uma peça processual, explicar o princípio do não retrocesso. Mas a publicação no blog faz necessário, ao menos, que se ofereça ao leitor uma noção sobre o tema. Uma das mais citadas é esta (mas há variantes bastante refinadas): “O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas ("lei da segurança social", "lei do subsídio de desemprego", "lei do serviço de saúde") deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa "anulação", "revogação" ou "aniquilação" pura a simples desse núcleo essencial.” (CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, 1998, p. 321)

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