Introdução
Em 03/01/2016, a Lei n.
13.146/2015 alterou o rol dos absolutamente
incapazes constante do CC/2002, art. 3o. Atualmente, somente são
considerados absolutamente incapazes “os menores de 16 (dezesseis) anos”.
Compare-se:
CC/2002, art. 3º, redação
original
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CC/2002, art. 3º, redação da Lei
n. 13.146/2015
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Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer
pessoalmente os atos da vida civil:
I - os menores de dezesseis
anos;
II - os que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática
desses atos;
III - os que, mesmo por causa
transitória, não puderem exprimir sua vontade.
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Art. 3o São absolutamente
incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16
(dezesseis) anos.
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O CC/2002, art. 198, I, que diz que “não corre a prescrição contra os incapazes de que trata o art. 3o;” permanece inalterado.
Caberia alegar que a redação original
permanece em vigor com base em um alegado princípio constitucional da vedação
do retrocesso? Tratei do tema em uma impugnação
ao cumprimento de sentença protocolada em agosto de 2016, que reproduzo
abaixo.
Princípio da vedação do
retrocesso
O Exequente afirma que a aplicação da Lei n. 13.146, da forma como
o INSS procedeu, viola a “vedação do
retrocesso.[i]
Cabe analisar se o princípio invocado tem alguma eficácia jurídica no Brasil.
A doutrina constitucional brasileira majoritária empreende grande
esforço para justificar a existência de um princípio constitucional implícito
de vedação do retrocesso, apesar de a
Constituição da República contar com amplo rol de direitos sociais. No Brasil,
costuma-se importar tudo, até mesmo princípios já abandonados por seus
inventores e criados para suprir lacuna de uma Lei Fundamental (alemã) que não
previa direitos fundamentais sociais.
A Nichtumkehrbarkeitstheorie
ou teoria da irreversibilidade, desenvolvida por Konrad Hesse, não teve futuro
na Alemanha, pela razão óbvia de que dependia de recursos econômicos. Por lá,
seguiu-se com a reserva do possível (Vorbehalt
des Möglichen).
Mas a doutrina de Hesse foi difundida pela Europa e chegou a
Portugal, onde J. J. Gomes Canotilho a abraçou e desenvolveu. Porém, o próprio
Canotilho, para dar sobrevida à doutrina, mudou de posição em relação à eficácia normativa do princípio da vedação
do retrocesso. Certamente teve influência nesse sentido o fato de o
Tribunal Constitucional português ter mudado seu entendimento quando deparado
com a crise econômica enfrentada por Portugal nos anos de 2010-2011.
A mudança pode ser verificada nos escritos mais recentes de
Canotilho. O autor português, em português claro, defende tese contrária à
visão rígida da vedação do retrocesso.
Merece destaque o seguinte trecho:
O rígido princípio da ‘não reversibilidade’ ou, formulação
marcadamente ideológica, o ‘princípio da
proibição da evolução reaccionária’ pressupunha um progresso, uma direcção
e uma meta emancipatória e unilateralmente definidas: aumento contínuo de
prestações sociais. Deve relativizar-se
este discurso que nós próprios enfatizámos noutros trabalhos. ‘A dramática aceitação de ‘menos trabalho e
menos salário, mas trabalho e salário e para todos’, o desafio da
bancarrota da previdência social, o desemprego duradouro, parecem apontar para
a insustentabilidade do princípio da não reversibilidade social. (CANOTILHO, Estudos sobre Direitos Fundamentais,
2004, p. 111)
Na mesma linha de Canotilho, pode-se citar Reis Novais, para quem
...
... a concepção do princípio da
proibição do retrocesso social entendida enquanto proibição de diminuição dos
níveis outrora garantidos de realização dos direitos sociais, ou de um direito
social em particular, não tem, pura e
simplesmente, nem arrimo positivo em qualquer ordem constitucional, nem
sustentação dogmática, nem justificação ou apoio em quaisquer critérios de
simples razoabilidade. (NOVAIS, Direitos
sociais, 2010, p. 244)
O mesmo autor prossegue, em outro trabalho:
De facto, só uma crença supersticiosa, um optimismo inabalável ou uma concepção determinista da história
—todos sem qualquer apoio constitucional—
permitiriam fundar a plausibilidade de um tal princípio de proibição do
retrocesso social. (NOVAIS, O princípio
da proibição do retrocesso. Crítica)
Ou seja, como já sabiam os alemães, “a lei é poderosa, mais
poderosa é a necessidade” (Gesetz ist
mächtig, mächtiger ist die Noth - GOETHE, Faust).
No STF, embora citado em alguns votos, não há posição firmada no
sentido de que seja um princípio juridicamente aplicável no Brasil. Para
exemplificar a posição crítica à utilização do princípio, confira-se voto do
Ministro Gilmar Mendes na ADI 4543-MC/DF. O renomado Ministro argumenta que não
se pode criar um novo critério de controle de constitucionalidade das leis,
paralelo aos previstos no direito positivo:
Agora, diante de modelos
legislativos cristalizados, Presidente, não me parece que seja de invocar, com
todas as vênias à eminente Relatora em relação ao seu cuidadoso voto, o
princípio do não-retrocesso, sob pena de
nós criarmos um novo parâmetro de controle, ao lado dos parâmetros
constitucionais efetivamente positivados, que é este modelo jurídico
exitoso ou simpático. Esse não pode ser o critério. Haverá leis boas, leis más,
leis feias!
Conforme visto, nem todos os comandos da sentença contam com a
força da coisa julgada após as alterações da Lei n. 13.146/2015. Mesmo assim, o
Exequente pretende executá-la inclusive no ponto superado. E com base em que?
Com base no princípio da vedação do
retrocesso. Este, conforme também visto, não é jurídico e, com toda
certeza, não é critério para controle de constitucionalidade das leis.
Leis e princípios
Aliás, de um modo geral, ainda que se tratasse de um princípio
positivado, ainda assim seria necessário haver uma incompatibilidade frontal
entre a lei e princípio para que o aplicador lhe negasse eficácia. A esse
respeito, o INSS adota como razões os argumentos de Humberto Ávila:
No caso de regras
infraconstitucionais, os princípios constitucionais de fato servem para
interpretar, bloquear e integrar as regras infraconstitucionais existentes. Os princípios constitucionais, no entanto,
só exercem a sua função de bloqueio, destinada a afastar a regra legal, quando
ela for efetivamente incompatível com o estado ideal cuja promoção é por
eles determinada. O aplicador só pode deixar de aplicar uma regra
infraconstitucional quando ela for inconstitucional, ou quando sua aplicação
for irrazoável, por ser o caso concreto extraordinário. Ele não pode deixar de aplicar uma regra infraconstitucional
simplesmente deixando-a de lado e pulando para o plano constitucional, por
não concordar com a conseqüência a ser desencadeada pela ocorrência do fato
previsto na sua hipótese. Ou a solução legislativa é incompatível com a
Constituição, e, por isso, deve ser afastada por meio da eficácia bloqueadora
dos princípios, sucedida pela sua eficácia integrativa, ou ela é compatível com
o ordenamento constitucional, não podendo, nesse caso, ser simplesmente
desconsiderada, como se fora um mero conselho, que o aplicador pudesse, ou não,
levar em conta como elemento orientador da conduta normativamente prescrita.
(AVILA, Neoconstitucionalismo)
Ora, a Lei n. 13.146/2015 nada tem de inconstitucional, mesmo
porque tem como base a Convenção sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência, que conta com status constitucional. E sequer implica um retrocesso, pois consiste na adoção, pelo legislador (inclusive o
da Convenção), da forma que melhor promove a inclusão social da pessoa com deficiência. Por fim, a
suspensividade ou não de um prazo prescricional está longe de violar o núcleo
de qualquer direito fundamental. [...]
[i] Nota:
Não era intenção, em uma peça processual, explicar o princípio do não retrocesso. Mas a publicação no blog faz necessário, ao menos, que se
ofereça ao leitor uma noção sobre o tema. Uma das mais citadas é esta (mas há
variantes bastante refinadas): “O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim:
o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado
e efectivado através de medidas legislativas ("lei da segurança
social", "lei
do subsídio de desemprego", "lei do serviço de saúde") deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo
inconstitucionais quaisquer medidas estaduais
que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa
"anulação", "revogação" ou "aniquilação" pura a simples desse núcleo essencial.” (CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da
constituição, 1998, p. 321)
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