sábado, 12 de junho de 2010

PROCESSO JUDICIAL: CONCEITO, IDENTIFICAÇÃO, INÍCIO E FIM

O processo judicial é uma espécie do gênero processo. Iniciemos examinando o gênero. Um processo, como qualquer objeto, é definido por meio do recorte de uma realidade mais ampla. Seu caráter distintivo está em realizar-se por etapas, de modo sequenciado.[1] Os tipos de processo são normalmente diferenciados entre si pelo resultado a que se dirigem. Não há necessariamente participação humana, nem uma rígida obediência a regras e, muito menos, a necessidade de contraditório nos processos em geral.[2] São exemplos de processos: processo digestivo, processo de amadurecimento, processo de decomposição, processo civilizatório, processo de seleção, processo editorial, processo de produção de um vinho, processo de erosão, processo judicial.

O conceito processo judicial tem como extensão os processos judiciais concretos. Cada processo judicial é um fenômeno concreto, singular, com a participação de pessoas, movimentação de elementos materiais, a submissão a um procedimento e uma duração no tempo. Um processo pode ser encerrado sem ter se completado. Mesmo quando um processo não alcança o resultado previsto, ele é processo, e é um determinado tipo de processo, caso se consiga identificar o resultado ao qual está dirigido. O processo judicial identifica-se pelo seu escopo jurídico: a obtenção da tutela jurisdicional.[3]

Cumpre diferenciar processo de procedimento. O primeiro faz parte do universo fenomênico enquanto o segundo faz parte do universo normativo.[4] Procedimento é o conjunto de regras de conduta (como proceder) estabelecidas para alcançar um resultado. O procedimento consiste em uma sequência de normas.[5] Essas regras podem ser de ordem técnica, jurídica, religiosa etc. O procedimento tem como destinatário seu executor. Não existe, para tomar um dos exemplos acima, “procedimento digestivo”, pois a digestão não é algo que se execute voluntariamente. São exemplos de procedimentos: procedimento para obtenção da carteira de habilitação, procedimento para matrícula, procedimento para naturalização, procedimento para licitação, procedimento para prisão de um suspeito, procedimento para desapropriação, procedimento judicial ordinário. É diferente um processo de contratação (que é algo concreto, existente quando suas etapas estão em andamento) de um procedimento de contratação (que é algo apenas estabelecido, descansando em um manual da estante do setor de recursos humanos, e que existe quer seja seguido ou não). Porque os sujeitos do processo judicial devem proceder conforme regras, existe um procedimento judicial a ser seguido. Mas o procedimento não esgota o universo do direito processual. Além das normas sobre procedimento (andamento, forma, tempo e lugar do processo), existem outras mais gerais, que incluem princípios e regras sobre jurisdição, competência, garantias processuais, legitimidade e coisa julgada, para citar apenas alguns exemplos. O que deve ficar claro é que o processo judicial, sendo uma espécie do gênero processo, não pode ser uma espécie do gênero procedimento. O processo não é, portanto, um procedimento em contraditório.[6]

Podemos definir processo judicial, portanto, como uma espécie do gênero processo (sequência de atos e fatos), regulada pelo direito e caracterizada pela busca da tutela jurisdicional.[7] A essa definição (o ser) podem ser acrescidas funções e o modo de ser do processo judicial no Estado constitucional atual: direito-garantia constitucional, forma de construção dos provimentos jurisdicionais, que se desenvolve com a observância do contraditório.

Durante o processo instaura-se uma relação jurídica entre, pelo menos, um sujeito e o Estado.[8] Não desconheço os bem elaborados argumentos em sentido diverso,[9] mas, tudo considerado, a ideia de relação jurídica processual ainda parece ser útil ao direito processual, quando não a “mais adequada, politicamente, para um Estado de direito democrático”.[10] A ideia é simples: “A relação jurídica processual é um aspecto do direito como relação. É a particular condição que assume o direito na zona restrita do processo.”[11]

Contudo, é preciso notar que o processo e a relação jurídica processual são coisas ontologicamente distintas, embora existam simultaneamente. O primeiro é sequência de fatos, encadeamento de fatos, realização de etapas. A segunda é vínculo entre as partes e o Estado. Não há como confundi-las. A natureza jurídica do processo não é a de uma relação jurídica. A relação jurídica é algo que ocorre durante o processo, sem confundir-se com ele.

Feitas essas considerações sobre o fenômeno processo judicial, torna-se possível identificar com precisão seu início e seu fim e, entre esses marcos, seu período de pendência.

Para Chiovenda, o que caracteriza a pendência de um processo é “a pendência de aspirações e expectativas, e dura enquanto uma parte, em razão da própria aspiração, possa pretender um provimento da autoridade judiciária.”[12] Essa ideia pode ser aceita mas, para que seja útil na prática, é preciso acrescentar-lhe o elemento que defina quando as “aspirações e expectativas” existem e quando elas deixam de existir e esse elemento é o procedimento. Parece-me que a identificação do início e do fim do processo deve ser feita com base na estrutura de cada procedimento (na acepção de conjunto de regras de conduta, i.é, de como proceder, para alcançar um resultado). O procedimento diz como o processo deve andar, os graus de jurisdição por que pode passar, os caminhos que pode seguir. Em algum momento o processo esgota o iter procedimental e não tem mais para onde ir.[13] É o seu fim. Mas se poderia objetar que há um procedimento para a reforma da sentença como há um procedimento para a sua rescisão, e resta saber por que o primeiro é considerado parte de um procedimento mais amplo e o segundo não é. Nos termos da legislação processual brasileira (CPC, arts. 214 e 219), pode-se entender que cada procedimento que inclua uma petição inicial requerendo a citação de alguém é uma unidade, e o protocolo da referida petição dá início a um processo. Trata-se de um critério legal. Ele nos permite afirmar que o fim de um processo em que a Fazenda Pública foi condenada a pagar quantia certa se dá com o trânsito em julgado da sentença de mérito. Da mesma forma, permite-nos afirmar que o fim de um processo em que um particular foi condenado a pagar quantia certa se dá com o trânsito em julgado da sentença que diz extinguir a execução.[14] Isso porque, para a execução contra a Fazenda Pública, a lei exige citação (CPC, art. 730), diversamente do que dispõe para a execução de título judicial contra particulares (art. 475-I). O mesmo critério permite, ainda, ver que a petição inicial da ação rescisória dá início a um novo processo e que, sem ingressar com ela, não há qualquer pendência de “aspirações e expectativas” (diferentemente do que ocorre no prazo recursal onde mesmo sem recorrer há, no mínimo, aspirações e expectativas referentes ao trânsito em julgado e à formação da coisa julgada).

Essas noções são importantes para a identificação de um novo processo, caminho a ser trilhado por quem obteve uma sentença citra petita que veio a transitar em julgado. Contudo, a noção de fim (extinção, término) do processo é menos importante que a de necessidade de um novo, pois para que as partes tenham de servir-se de um novo processo basta que no processo anterior tenha ocorrido a coisa julgada formal em relação a algum capítulo, mesmo que os demais capítulos permaneçam sub judice, impedindo a extinção do processo (v.g. no recurso parcial).


NOTAS

[1] Ver COUTURE, Fundamentos del derecho procesal civil, p. 99.

[2] Elio Fazzalari defende outra concepção: o processo seria um procedimento no qual participam, em contraditório, aqueles em cuja esfera jurídica o ato final há de intervir. Ver FAZZALARI, Elio. Procedimento (teoria generale). In: ENCICLOPEDIA del diritto. v. XXXV. [Milano]: Giuffrè, 1986, p. 827.

[3] Ver COUTURE, Fundamentos del derecho procesal civil, p. 99.

[4] Para Elio Fazzalari, tal como para o presente artigo, o procedimento se apresenta como uma sequência de normas. Mas Fazzalari, diferentemente do presente artigo, designa por procedimento também a realização concreta dos atos previstos nessa sequência de normas e, ainda, a sequência de posições subjetivas por ela estabelecida. Ver FAZZALARI, Procedimento, p. 819 e 825.

[5] FAZZALARI, Procedimento, p. 826.

[6] Elio Fazzalari defende outra concepção: o processo seria um procedimento no qual participam, em contraditório, aqueles em cuja esfera jurídica o ato final há de intervir. Ver FAZZALARI, Procedimento, p. 827. A conceituação de processo e de procedimento empreendida neste artigo não serve como uma refutação das ideias de Fazzalari, uma vez que se trabalha com conceitos diversos de procedimento: (a) Neste artigo, procedimento é apenas o conjunto de normas que devem ser observadas para a obtenção de determinado fim, o que poderia ser chamado, provisoriamente, de procedimento-type. Aqui, o conceito não inclui o sentido de prática de atos que seguem um procedimento-type, sentido este que poderia ser chamado procedimento-token. Na linguagem comum, tanto o primeiro como o segundo conceito são representados pelo termo “procedimento”. (b) Fazzalari funde três conceitos no de procedimento, como ele mesmo esclarece: “... o ‘procedimento’ apresenta-se como uma determinada sequência de ‘normas’, e dos ‘atos’ por essas disciplinados e das ‘posições subjetivas’ dessas extraíveis ...”. (ob. cit. p. 819, tradução minha). Texto original: “... il ‘procedimento’ si presenta come una determinata sequenza di ‘norme’, nonché degli ‘atti’ da esse disciplinati e dele ‘posizioni soggettive’ da esse estraibili ...”. Adotado esse sentido de “procedimento”, processo e procedimento tornam-se conceitos comparáveis e, entendendo-se procedimento como o conceito mais amplo, torna-se possível falar em processo como espécie do gênero procedimento. Ver, adicionalmente, GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 105-118.

[7] Essa definição corresponde, em termos gerais, à de Eduardo Couture, assim formulada: “Podemos definir, pois, o processo judicial, em uma primeira acepção, como a sequência ou série de atos que se desenvolvem progressivamente, com o objetivo de resolver, mediante um julgamento da autoridade, o conflito submetido à sua decisão.” - COUTURE, Fundamentos del derecho procesal civil, p. 99. Texto original: “Podemos definir, pues, el proceso judicial, en una primera acepción, como la secuencia o serie de actos que se desenvuelven progresivamente, con el objeto de resolver, mediante un juicio de la autoridad, el conflicto sometido a su decisión.”

[8] Ver HELLWIG, Konrad. Lehrbuch des Deutschen Zivilprozeßrechts. Bd. 2. Leipzig: Deichert, 1907, p. 36; PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil, I, p. XXI; COUTURE, Fundamentos del derecho procesal civil, p. 110 e 118; CALMON DE PASSOS, Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais, p. 72-73; VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 123; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao código de processo civil. Tomo I (arts. 1o a 153). São Paulo: Memória Jurídica, 2004, p. 17-18.

[9] Com críticas bem fundamentadas ao tratamento do processo como relação jurídica: GOLDSCHMIDT, Derecho procesal civil, p. 7-9; ARAGONESES ALONSO, Pedro. Proceso y derecho procesal: introducción. 2. ed. Madrid: Edersa, 1997, p. 235ss; ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 112; ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: vol. 1: teoria geral do processo civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010, p. 96-100 e MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006, p. 396-401.

[10] CALMON DE PASSOS, Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais, p. 73.

[11] COUTURE, Fundamentos del derecho procesal civil, p. 109, tradução minha.

[12] CHIOVENDA, Giuseppe. Rapporto giuridico processuale e litispendenza. In: Saggi di diritto processuale civile (1894-1937). Milano: Giuffrè, 1993, v. II. p. 378, tradução minha. Texto original: “La litispendeza consiste appunto in questa pendenza de aspirazioni e aspettazioni; e dura finchè una parte, a servizio della propria aspirazione, può pretendere un provedimento dell’autorità giudiziaria.”

[13] Sobre o exaurimento do procedimento, ver FALZEA, Ricerche di teoria generale del diritto e di dogmatica giuridica, II, p. 185.

[14] Ver BEDAQUE, Efetividade do processo e técnica processual, p. 55.


REFERÊNCIAS

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997. ISBN 85-02-02386-1.

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: vol. 1: teoria geral do processo civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010. ISBN 978-85-224-5664-2.

ARAGONESES ALONSO, Pedro. Proceso y derecho procesal: introducción. 2. ed. Madrid: Edersa, 1997.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. ISBN 85-7420-742-X.

CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002. ISBN 85-309-0918-6.

CHIOVENDA, Giuseppe. Rapporto giuridico processuale e litispendenza. In: Saggi di diritto processuale civile (1894-1937). Milano: Giuffrè, 1993, v. II.

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed. Montevideo: B de F, 2004. ISBN 987-1089-05-8.

FALZEA, Angelo. Ricerche di teoria generale del diritto e di dogmatica giuridica. Vol. II, dogmatica giuridica. Milano: Giuffrè, 1997. ISBN 88-14-06334-6.

FAZZALARI, Elio. Procedimento (teoria generale). In: ENCICLOPEDIA del diritto. v. XXXV. [Milano]: Giuffrè, 1986. ISBN 88-14-00828-0. p. 819-835.

GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Trad. Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Labor, 1936.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. ISBN 85-321-0071-6.

HELLWIG, Konrad. Lehrbuch des Deutschen Zivilprozeßrechts. Bd. 2. Leipzig: Deichert, 1907.

MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006.

MITIDIERO, Daniel. Comentários ao código de processo civil. Tomo I (arts. 1o a 153). São Paulo: Memória Jurídica, 2004. ISBN 858826419-6.

PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários ao código de processo civil. Tomo I, arts. 1º-45. 5. ed. Atualiz. Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 2001. ISBN 85-309-0354-4.

VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1989.

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